Dinheiro público, código aberto
February 24, 2020
Sempre que o dinheiro público for usado para comprar ou desenvolver software, este software deve ser público e reutilizável.
O ano é 1999, e eu estava no início do segundo ano numa empresa de consultoria, à qual me tinha juntado no ano anterior, enquanto terminava o curso de engenharia. Nesta fria manhã encontrava-me sentado numa pequena sala de reuniões de conhecida empresa que fabricava e vendia software de gestão de base de dados, acompanhado por dois colegas do trabalho. Eu, um reles júnior e o mais novo do grupo, estava aqui, calculei eu, pelo meu interesse no ecossistema Java, que nesta altura começava a florir. Ainda na sua infância, esta linguagem e plataforma de desenvolvimento tinha vindo a ser vista como o maior competidor direto à Microsoft e o seu eco-sistema. Esta plataforma Java, ao contrário da competição, tinha um esquema de licenciamento de código aberto e de uso liberal. Inventada pela histórica Sun Microsystems, o crescimento do Java implicava o crescimento da Sun Microsystems, que na altura vendia hardware e o respetivo sistema operativo.
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De volta à reunião em causa. Esta empresa estava a apresentar um produto para construção de portais. Neste ano a internet ainda dava os primeiros passos no mundo do consumidor. A banda-larga era ainda rara, e a internet era principalmente acedida, em Portugal, através de uns lentos modems que tínhamos de ligar à linha telefónica.
E os portais do género do Yahoo estavam na moda, e todos queriam ter um. Este produto permitia então o desenvolvimento e entrega de um dito portal web, utilizando a linguagem de programação Java. Não sem alguma relutância dos representantes deste fornecedor, consegui extrair que este produto era — com a excepção do motor de base-de-dados, que era licenciado à parte, — composto por uma série de componentes open-source (Apache server e Apache Tomcat), bem como algumas bibliotecas — também open-source — e alguma fita-cola, cuspo e suor. A licença de utilização: uma pequena fortuna.
Esta empresa estava a re-empacotar software livre para o qual não tinham contribuído uma linha de código e a revender por uma licença exorbitante. Quantos terão eles enganado com esta tática?
Este episódio e alguns outros serviram para reforçar a minha convicção e aumentar o meu desgosto com a exploração que algumas empresas fazem do software livre. Serviu também para aumentar a minha preocupação com a forma como o software livre era (e ainda muitas vezes é) visto pelos decisores em empresas privadas e administração pública. Se estes vendiam, tenho a certeza que alguns compraram — nunca ninguém foi despedido por comprar software a um grande fornecedor!
Mas o mundo mudou!
O mundo do software entretanto mudou muito. O software livre e o movimento de código aberto ganharam por uma margem enorme. O software livre constitui uma parte gigante da infra-estrutura da internet e da web, e teve um papel essencial em baixar a barreira de entrada a novas empresas e à criação de novos produtos. Mas existe ainda um bastião de resistência que pode passar despercebido, mas que toca a todos nós cidadãos pagadores de impostos: a administração púbica. Sim, a administração pública, essa entidade abstrata que trabalha para nós, e a quem compete olear e minimizar o sofrimento que sentimos ao passar pelos milhentos processos burocráticos, que emprega um número muito considerável de portugueses e que necessita, como todas as instituições burocráticas, de sistemas de informação.
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Ao longo destes anos de profissão trabalhei inicialmente no mercado nacional, e algumas vezes (felizmente poucas) estive em contato com concursos públicos para construção de sistemas de informação. Mas eventualmente — viva a crise! — tive de trabalhar para empresas “lá fora” para sustentar a minha família, e por isso fui-me rapidamente desligando destas tricas e comunidades.
Até lá custou-me observar, não sem alguma náusea, a forma como a administração pública geralmente contrata os serviços de desenvolvimento dos sistemas de informação que vê necessários existir, e a forma como alguns fornecedores a (mal)tratam e, por vezes, exploram.
Como disse, tenho vivido neste país, mas quase como emigrado, trabalhando para empresas de fora, muito desligado da politiquice local, dos ditos concursos públicos e até das manchetes dos jornais. Focado na família e amigos, foquei-me também nas comunidades e projetos open-source, que muito florescem e são a base e o centro da inovação em muitas frentes das tecnologias de informação (pelo menos “lá fora”).
Mas as organizações públicas, tal como as outras, precisam de quem lhes desenvolva, integre e mantenha os sistemas, certo? A ideia de software livre é muito bonita e ideal, mas quem vai providenciar os serviços de desenvolvimento e manutenção de que precisamos no mundo real?
A questão aqui é mais complicada, e precisamos primeiro de definir o que é Software Livre.
Antes disso, quero dizer que as idéias e os princípios que aqui exploro são principalmente aplicáveis à administração pública. É claro que muitas coisas mais ou menos estranhas se passam em organizações privadas, mas isso não nos afeta muito como contribuintes (a não ser que o estado tenha de subsidiar ou salvar esta instituição quando esta estiver falida). No entanto muitos (se não todos) destes princípios são aplicáveis a organizações privadas.
Aqui vai então:
Software livre dá a todos a oportunidade de indivíduos, empresas, organizações e administração pública o direito de usar, partilhar e melhorar o software.
Vamos então aqui discutir alguns aspetos da software livre na sua aplicação à administração pública:
- Eficiência
- Valor cívico
- Soberania tecnológica
- Segurança
- Inovação
- Colaboração
- Interoperabilidade
- Promoção da iniciativa privada
No próximo artigo vamos começar a explorar cada um destes benefícios.